O brasileiro não lê
A história de uma frase feita, e uma sugestão para quem insiste em repeti-la
DANILO
VENTICINQUE
O
brasileiro não lê. Ao menos é isso que eu tenho escutado. Por
obrigação profissional e por obsessão nas horas vagas, costumo
conversar muito sobre livros. Com uma frequência incômoda, não
importa qual é a formação de quem fala comigo, essa frase se
repete. Amigos, taxistas, colegas jornalistas, escritores e até
executivos de editoras já me disseram que o brasileiro não lê.
Quando
temos dificuldade para entender uma frase, uma boa técnica de
aprendizado é repeti-la várias vezes. Um dos meus primeiros
professores de inglês me ensinou isso. Nunca pensei que fosse usar
esse truque com uma frase em português. Mas, depois de ouvir tantas
vezes que o brasileiro não lê, e de discordar tanto dos que dizem
isso, resolvi tentar fazer esse exercício. Talvez enfim eu os
entenda. Ou talvez eu me faça entender.
O
brasileiro não lê, mas a quantidade de livros produzidos no Brasil
só cresceu nos últimos anos. Na pesquisa mais recente da Câmara
Brasileira do Livro, a produção anual se aproximava dos 500 milhões
de exemplares. Seriam aproximadamente 2,5 livros para cada
brasileiro, se o brasileiro lesse.
O
brasileiro não lê, mas o país é o nono maior mercado editorial do
mundo, com um faturamento de R$ 6,2 bilhões. Editoras estrangeiras
têm desembarcado no país para investir na publicação de livros
para os brasileiros que não leem. Uma das primeiras foi a gigante
espanhola Planeta, em 2003. Naquela época, imagino, os brasileiros
já não liam. Outras editoras vieram depois, no mesmo movimento
incompreensível.
O
brasileiro não lê, mas desde 2004 o preço médio do livro caiu
40%, descontada a inflação. Entre os motivos para a queda estão o
aumento nas tiragens, o lançamento de edições mais populares e a
chegada dos livros a um novo público. Um mistério, já que o
brasileiro não lê.
O
brasileiro não lê – e os poucos que leem, é claro, são os
brasileiros ricos. Mas a coleção de livros de bolso da L&PM,
conhecida por suas edições baratas de clássicos da literatura,
vendeu mais de 30 milhões de exemplares desde 2002. Com seu sucesso,
os livros conquistaram pontos de venda alternativos, como padarias,
lojas de conveniência, farmácias e até açougues. As editoras têm
feito um esforço irracional para levar seu acervo a mais brasileiros
que não leem. Algumas já incluíram livros nos catálogos de venda
porta-a-porta de grandes empresas de cosméticos. Não é preciso nem
sair de casa para praticar o hábito de não ler.
O
brasileiro não lê, mas vez ou outra aparecem best-sellers por aqui.
Esse é o nome dado aos autores cujos livros muitos brasileiros
compram e, evidentemente, não leem. Uma delas, a carioca Thalita
Rebouças, já vendeu mais de um milhão de exemplares. Seus textos
são escritos para crianças e adolescentes – que, como todos
sabemos, trocaram os livros pelos tablets e só querem saber de
games. Outro exemplo é Eduardo Spohr, que se tornou um fenômeno
editorial com seus romances de fantasia. Ele é o símbolo de uma
geração de novos autores do gênero, que escrevem para centenas de
milhares de jovens brasileiros que não leem.
O
brasileiro não lê – e, mesmo se lesse, só leria bobagens. Mas,
há poucos meses, um poeta estava entre os mais vendidos do país. Em
algumas livrarias, a antologia Toda
poesia, de Paulo Leminski
(1944-1989), chegou
ao primeiro lugar.
Ultrapassou a trilogia
Cinquenta tons de cinza,
até então a favorita dos brasileiros (e brasileiras) que não
leem.
Na
semana passada, mais de 40 mil brasileiros (que não leem) eram
esperados no Fórum das Letras de Ouro Preto. Eu estava lá. Nas
mesas de debates, editores discutiam maneiras de tornar o livro mais
barato e autores conversavam sobre a melhor forma de chamar a atenção
dos leitores. Um debate inútil, já que o brasileiro não lê. A
partir desta semana, entre 6 e 16 de junho, a Feira do Livro de
Ribeirão Preto (SP) deve receber mais de 500 mil pessoas. Na próxima
segunda-feira (10), começa a venda de ingressos para a cultuada
Festa Literária Internacional de Paraty, que inspirou festivais
semelhantes em várias outras cidades do país. Haja eventos
literários para os brasileiros que não leem.
Na
pesquisa Retratos da Leitura, divulgada no ano passado, metade dos
brasileiros com mais de 5 anos disse não ter lido nenhum livro nos
últimos três meses. É compreensível, num país em que há
poucas livrarias, as
bibliotecas públicas estão abandonadas e 20% das pessoas entre 15 e
49 anos são analfabetas funcionais. Mas há outra metade. São 88,2
milhões de leitores. Alguns se dedicam mais à leitura; outros,
provavelmente a maior parte deles, são leitores ocasionais. Há um
enorme potencial para crescimento, mas já é um número animador.
Os
brasileiros começaram a ler. Falta começar a mudar o discurso. Em
vez de reclamar dos brasileiros que não leem, os brasileiros que
leem deveriam se esforçar para espalhar o hábito da leitura.
Espalhar clichês pessimistas não vai fazer ninguém abrir um
livro.
Eu
poderia ter repetido tudo isso para cada pessoa de quem ouvi a mesma
frase feita. Mas resolvi escrever, porque acredito que o brasileiro
lê.
DANILO
VENTICINQUE é editor de livros de ÉPOCA. Conta com a revolução
dos e-books para economizar espaço na estante e colocar as leituras
em dia. Escreve às terças-feiras sobre os poucos lançamentos que
consegue ler, entre os muitos que compra por impulso (Foto: Sidinei
Lopes/ÉPOCA)
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